sexta-feira, 8 de julho de 2011

Orhan Pamuk - Neve

Em 2005, participei de um Congresso sobre diversidade literária e cultural, em Nova Delhi, na Índia. Lá, entre outros escritores, apareceu um que se destacava pelo comportamento e aparência bizarros. O mal-vestido, descabelado e desgrenhado escritor era Orhan Pamuk, que, até então, não era muito conhecido fora da Turquia, seu país de origem.
Eu, que já havia lido dois de seus livros, ainda não traduzidos para o português, aproveitei a oportunidade para conversar um pouco com ele. Neste período, eu estava hospedada na embaixada da Turquia, que o recebera. Fiquei estupefata quando soube, no ano seguinte, que Pamuk era o novo Nobel de Literatura.

Ainda na Índia, Pamuk falava de história, de literatura e de seu desejo de se tornar pintor. Desde a infância até a idade adulta, ele se dedicara à pintura, até tomar "a decisão" de tornar-se, não apenas um escritor, mas um "grande escritor", segundo depoimento dele. Foi assim. O primeiro passo: a decisão, aparentemente insana. Depois o isolamento e o abandono de toda e qualquer vida social - Pamuk passou anos trancado, só escrevendo e sobrevivendo de quase nada. Desempregado e isolado, ele dedicou-se exclusivamente à leitura e à escrita.

De seu inusitado projeto, nasceu uma extraordinária capacidade de retratar sua Turquia, o mundo de Pamuk. Cada livro a recorta de maneira única, enfocando um aspecto específico - a política, a pintura, a cidade de Istambul, os ritos...

E, entre eles, o excelente "Neve" - descrição perfeita das mais antigas questões ontológicas do ser humano, mas num contexto turco. Quem não conhece o original irá perder alguns jogos de linguagem feitos por Pamuk. A palavra "neve", em turco, "kar", povoa tudo no livro, inclusive o nome de sua personagem principal, "Ka". Ainda assim, o leitor poderá se deleitar com os diálogos inquietantes e com a atmosfera epifânica do livro. Lindo! Revelador! Deixo aqui o trecho de um desses diálogos:

Como sabia Ka desde o começo, naquela parte do mundo a fé em Deus não era coisa que se alcançasse engendrando pensamentos sublimes e estendendo a própria capacidade criativa ao seu limite máximo; tampouco era uma coisa que se podia alcançar sozinho; acima de tudo significava juntar-se a uma mesquita, fazer parte de uma comunidade. Apesar disso, Ka estava desapontado em ver que Muhtar falava tanto sobre seu grupo, sem falar em Deus ou em sua própria fé uma só vez. Ele desprezou Muhtar por isso. Mas enquanto pressionava a testa contra a janela, disse uma coisa totalmente diferente. "Muhtar, se eu começasse a acreditar em Deus, você ficaria decepcionado, e acho que iria me desprezar." "Por que?" "A idéia de um indivíduo ocidentalizado solitário cuja fé em Deus é particular é muito ameaçadora para você. Para você, é muito mais fácil confiar num ateu que pertence a uma comunidade que num homem solitário que acredita em Deus. Para você, um homem solitário é muito mais desprezível e pecador que um descrente."

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