quarta-feira, 27 de julho de 2011

In Love with George Orwell's Works

Ando num momento de buscar "aquele" livro que eu deveria ter lido há MUITO tempo, mas nunca "dava tempo". O último foi o clássico "Dracula", de Bram Stocker, o que deu origem e vida a todo o mito, filmes, etc... Uma obra prima. E agora: 1984!!! Uma lição de tudo, impecável, perfeito, verídico e, como afirmava Degas, quando se referia à arte de verdade, mais real do que a realidade. Além disso, lembra tantas coisas que vivemos e pelas quais passamos sem nos articularmos em relação a elas... No livro, os trabalhadores devem passar, como rotina, todos os dias, pela "hora do ódio"... a violência é o entretenimento, as crianças são "horríveis" e a "teletela" acompanha todos os atos e pensamentos de um homem profundamente solitário.


Transcrevo duas primorosas passagens:


Eram quase onze horas e no Departamento de Registro, onde Winston trabalhava, já arrastavam cadeiras dos cubículos e as arrumavam no centro do salão, diante da grande teletela, preparando-se para os Dois Minutos de ódio. Winston ia ocupando seu lugar numa das filas do meio quando entraram inesperadamente na sala duas pessoas que conhecia de vista, mas com quem nunca falara. Uma delas era uma moça com quem se encontrara muitas vezes nos corredores. Não sabia como se chamava, mas sabia que trabalhava no Departamento de Ficção. Era de presumir - pois a vira levando uma chave inglêsa nas mãos sujas de graxa - que fosse mecânica de uma das máquinas de novelizar. Devia ter uns vinte e sete anos, e era de aparência audaciosa, com cabelo negro e espesso, rosto sardento e movimentos rápidos, atléticos. Uma estreita faixa escarlate, emblema da Liga Juvenil Anti-Sexo, dava várias voltas à sua cintura, o suficiente para realçar as curvas das ancas. Winston antipatizara com ela desde o primeiro momento. E sabia porquê. Era por causa da atmosfera de campos de hóquei, chuveiro frio, piqueniques e grande linha moral que conseguia inspirar. Êle antipatizava com tÔdas as mulheres, principalmente com as moças e bonitas. Eram sempre as mulheres, e principalmente as moças, os militantes mais fervorosos do Partido, os devoradores de palavras de ordem, os espiões amadores e os espiculas dos desvios. Esta jovem lhe dava a impressão de ser mais perigosa que a maioria. Uma vez que se haviam cruzado no corredor, ela lhe lançara um rápido olhar de esguelha que parecia tê-lo penetrado até o imo, e o enchera de terror. Até lhe ocorrera a idéia de que talvez fosse da Polícia do Pensamento. Na verdade, isso era pouco provável. Entretanto, continuava sentindo um estranho mal-estar, em cuja composição havia medo e hostilidade, e que sobrevinha sempre que ela sempre se aproximava. (...)
(...) O horrível dos Dois Minutos de ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vindita, um desêjo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo, contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas. E no entanto, a fúria que se sentia era uma emoção abstrata, não dirigida, que podia passar de um alvo a outro como a chama dum maçarico. Assim, havia momentos em que o ódio de Winston não se dirigia contra Goldstein mas, ao invés, contra o Grande Irmão, o Partido e a Polícia do Pensamento; e nesses momentos o seu coração se aproximava do solitário e ridicularizado herege da tela, o único guardião da verdade e da sanidade num mundo de mentiras. No entanto, no instante seguinte se irmanava com os circunstantes, e tudo quanto se dizia de Goldstein lhe parecia verdadeiro. Nesses momentos, o seu ódio secreto pelo Grande Irmão se transformava em adoração, e o Grande Irmão parecia crescer, protetor destemido e invencível, firme como uma rocha contra as hordes da Ásia, e Goldstein, apesar do seu isolamento, sua fraqueza e da dúvida que cercava a sua própria existência, lhe parecia um hipnotizador sinistro, capaz de destruir a estrutura da civilização pelo mero poder da voz.(...)

(...) O ódio chegou ao clímax. A voz de Goldstein transformara-se de fato num balido de ovelha, e por um instante o rosto se transformou numa cara de carneiro. Depois a cara de carneiro se fundiu na de um soldado eurasiano que parecia avançar, enorme e terrível, com a metralhadora de mão rugindo, parecendo saltar da superfície da tela, de modo tão real que alguns da primeira fileira se inclinaram para trás. No mesmo momento, porém, arrancando um fundo suspiro de alívio de todos, a figura hostil fundiu-se na fisionomia do Grande Irmão, de cabelos e bigodes negros, cheio de força e de misteriosa calma, e tão vasta que tomava quase toda a tela. Ninguém ouviu o que o Grande Irmão disse. Eram apenas palavras de incitamento, o tipo das palavras que se pronunciam no vivo do combate, palavras que não se distinguem individualmente mas que restauram a confiança pelo fato de serem ditas. Então o rosto do Grande Irmão sumiu de novo e no seu lugar apareceram as três divisas do Partido, em maiúsculas, em negrito:
GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA
Mas o rosto do Grande Irmão pareceu persistir por vários segundos na tela, como se o seu impacto nas pupilas fosse forte demais para se esmaecer tão rápido. A mulherzinha do cabelo côr de areia atirara-se sôbre o espaldar da cadeira que tinha à frente. Com um murmurio trêmulo que parecia dizer "Meu Salvador", extendeu os braços para a tela. Depois ocultou a face nas mãos. Era claro que orava.
Nesse momento, todo o grupo se pÔs a entoar um cantochão ritmado "G.I.!...G.I.! ... G.I.!" repetido inúmeras vezes, com uma longa pausa entre o G e o I - um som cavo e surdo, curiosamente selvagem, no fundo do qual se parecia ouvir batidas de pés nús e o rufo dos atabaques. Durou meio minuto talvez. Era um estribilho que se ouvia com frequência nos momentos de emoção dominadora. Era em parte um hino à sapiência e majestade do Grande Irmão porém, mais que isso, era auto-hipnotismo, o afogar deliberado da consciência por meio do barulho rítmico. As entranhas de Winston pareceram esfriar. Durante os Dois Minutos de ódio, não era possível deixar de participar do delírio geral, mas aquele cântico sub-humano "G.I.! ... G.I.!" sempre o enchia de pavor. Naturalmente, cantava com os outros: seria impossível proceder doutra forma. Dominar os sentimentos, controlar as feições, fazer o que todo mundo fazia, era uma reação instintiva. Havia porém um lapso de dois segundos em que a expressão de seus olhos poderia trai-lo. E foi exatamente nesse lapso que a coisa sucedera - se é que de fato sucedera.(...)

(...) A  teletela assinalou catorze horas. Precisava sair dali a dez minutos. Tinha de estar de volta ao serviço às catorze e trinta. Curiosamente, o soar das horas pareceu dar-lhe novo ânimo. Êle não passava dum fantasma solitário exprimindo uma verdade que ninguém jamais ouviria. Mas enquanto a exprimisse, a continuidade não seria interrompida. Não é fazendo ouvir a  nossa voz mas permanecendo são de mente que preservamos a herança humana. Êle voltou à mesa, molhou a pena e escreveu: Ao  futuro ou ao passado, a uma época  em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros e que não vivam  sós - a  uma época  em  que  a  verdade existir e o que foi feito não puder ser desfeito (...)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

E ainda mais Mandelstam

Я наравне с  другими
Хочу тебе служить,
От ревности сухими
Губами ворожить.
Не утоляет  слово
Мне пересохших уст,
И без тебя мне  снова
Дремучий воздух пуст. 
Я больше не ревную,
Но я тебя хочу,
И сам себя несу я
Как жертву палачу.
Тебя не назову я
Ни радость, ни любовь;
На дикую, чужую
Мне подменили  кровь. 
Еще одно мгновенье,
И я скажу  тебе:
Не радость, а  мученье
Я нахожу в тебе.
И, словно преступленье,
Меня к тебе влечет
Искусанный, в  смятеньи,
Вишневый нежный рот. 
Вернись ко мне  скорее:
Мне страшно  без тебя,
Я никогда сильнее
Не чувствувал тебя,
И всё, чего хочу я, 
Я вижу наяву.
Я больше не ревную,
Но я тебя зову. 
1920


 
* * * 
Sou como todos os outros,
Quero só  poder servir-te.
Tenho o lábio tenso, enxuto,
Que já  não fala, só queima,
De ciúme, ainda teima
Que sem você  só existe
O ar oco, denso e triste. 
Ciúmes, eu já não sinto,
Sinto é  um desejo imenso,
Verto-me o pescoço à corda
E enfrento meu algoz.
E assim não te chamo de alento,
Nem de amor, nem de alegria,
Pois meu sangue se associa
A um outro mais voraz. 
Quero um instante ainda,
Tenho uma coisa a dizer:
Que o que trazes é tormento,  
Não é  gáudio ou prazer.
A violação benfazeja
Me encaminha ao delito,
Faz com que me atire a ti,
Sobre os lábios de cereja
Em desarranjo mordidos.                  
Volta a mim assim que possas,
Porque sem ti dói-me o corpo,
E sentir-te tanto endossa
A inépcia e o desconforto
De não saber não sentir-te.
Mas sei claro e sem engano:
Ciúmes, não tenho mais,
Mas te quero a chama, e chamo.              1920




 
Американка

Американка в  двадцать лет
Должна добраться  до Египта,
Забыв “Титаника” совет,
Что спит на дне  мрачнее крипта. 
В Америке гудки  поют,
И красных небоскребов  трубы
Холодным тучам  отдают
Свои прокопченные губы. 
И в Лувре  океана дочь
Стоит, прекрасная как тополь;
Чтоб мрамор сахарный толочь,
Влезает белкой на Акрополь. 
Не понимая  ничего,
Читает “Фауста” в вагоне
И сожалеет, отчего
Людовик больше не на троне. 
1913




 
A americana 
Toda americana até os vinte anos
Deveria viajar até o Egito,
E esquecendo que o aviso do Titanic
Jaz, à  cripta escura, escondido. 
Na América, as buzinas cantam ,
Há chaminés de arranha-céus vermelhos,
Que às nuvens geladas - qual espelho -
De volta, de seus lábios apertados, lançam.    
No Louvre, a filha do oceano,
Linda, pára como um álamo,
Mói do mármore o açúcar
Como esquilo, na Acrópole o suga.         
Não compreendendo nada,
Lê o “Fausto” no vagão
E lamenta, transtornada,
Ludovico destronado da nação.
 
1913

Orhan Pamuk - Neve

Em 2005, participei de um Congresso sobre diversidade literária e cultural, em Nova Delhi, na Índia. Lá, entre outros escritores, apareceu um que se destacava pelo comportamento e aparência bizarros. O mal-vestido, descabelado e desgrenhado escritor era Orhan Pamuk, que, até então, não era muito conhecido fora da Turquia, seu país de origem.
Eu, que já havia lido dois de seus livros, ainda não traduzidos para o português, aproveitei a oportunidade para conversar um pouco com ele. Neste período, eu estava hospedada na embaixada da Turquia, que o recebera. Fiquei estupefata quando soube, no ano seguinte, que Pamuk era o novo Nobel de Literatura.

Ainda na Índia, Pamuk falava de história, de literatura e de seu desejo de se tornar pintor. Desde a infância até a idade adulta, ele se dedicara à pintura, até tomar "a decisão" de tornar-se, não apenas um escritor, mas um "grande escritor", segundo depoimento dele. Foi assim. O primeiro passo: a decisão, aparentemente insana. Depois o isolamento e o abandono de toda e qualquer vida social - Pamuk passou anos trancado, só escrevendo e sobrevivendo de quase nada. Desempregado e isolado, ele dedicou-se exclusivamente à leitura e à escrita.

De seu inusitado projeto, nasceu uma extraordinária capacidade de retratar sua Turquia, o mundo de Pamuk. Cada livro a recorta de maneira única, enfocando um aspecto específico - a política, a pintura, a cidade de Istambul, os ritos...

E, entre eles, o excelente "Neve" - descrição perfeita das mais antigas questões ontológicas do ser humano, mas num contexto turco. Quem não conhece o original irá perder alguns jogos de linguagem feitos por Pamuk. A palavra "neve", em turco, "kar", povoa tudo no livro, inclusive o nome de sua personagem principal, "Ka". Ainda assim, o leitor poderá se deleitar com os diálogos inquietantes e com a atmosfera epifânica do livro. Lindo! Revelador! Deixo aqui o trecho de um desses diálogos:

Como sabia Ka desde o começo, naquela parte do mundo a fé em Deus não era coisa que se alcançasse engendrando pensamentos sublimes e estendendo a própria capacidade criativa ao seu limite máximo; tampouco era uma coisa que se podia alcançar sozinho; acima de tudo significava juntar-se a uma mesquita, fazer parte de uma comunidade. Apesar disso, Ka estava desapontado em ver que Muhtar falava tanto sobre seu grupo, sem falar em Deus ou em sua própria fé uma só vez. Ele desprezou Muhtar por isso. Mas enquanto pressionava a testa contra a janela, disse uma coisa totalmente diferente. "Muhtar, se eu começasse a acreditar em Deus, você ficaria decepcionado, e acho que iria me desprezar." "Por que?" "A idéia de um indivíduo ocidentalizado solitário cuja fé em Deus é particular é muito ameaçadora para você. Para você, é muito mais fácil confiar num ateu que pertence a uma comunidade que num homem solitário que acredita em Deus. Para você, um homem solitário é muito mais desprezível e pecador que um descrente."

Muammer

Muammer Ketencoglu - In English
21 Mar 2010 - 15:32:33
I met Muammer in Ankara, in 2003, in a restaurant. The first comment he made, that afternoon, after we were introduced, in his irreproachable English, was that he "wasn't very graceful while eating". Some time later, I realized that, opposite to what he said, Muammer is gracious in everthing he does and, much more than this, I reviewed my concept of graciousness. Muammer, who is blind from birth, tought me how to see a much more "graceful" world than I've ever thought could exist and, above this, tought me how to listen to it.

And that is exactly this: listening to Muammer is listening to the world. This man, with his brilliant soul, sweet smile and incredible Linguist, Political and Literary knowledge chose as his profession, after graduating in Political Sciences in one of the best universities in Turkey, enchanting the music of the world,  the music of the whole world.

His research concerns the investigation of the music of various countries, in several languages, especially Bulgarian, Greek (!), Armenian (!!!), Kurdish (!!!!!). Sounds strange? Daring, at least. Risky too. Muammer uses his music for gathering, instead of separating, and works together with many artists from all these ethnicities and from many others. He studies the music of Afghanistan, Azerbaijan, from the Basque country and also from Brazil. He listens to Luiz Gonzaga, Jacob do Bandolin, Orlando Silva and to many other artists whom even the majority of the Brazilian people never heard about.

Once Muammer gave me two flower bouquets that never withered... My relationship with flowers has definetely changed since then.

His liveliness never fades. It's amazing. In one of the pleasant conversations we had in his house, drinking "tchay", that he prepared himself for us, he talked about Brazilian Literature. Muammer was the only Turk I met in two years in Turkey who read the Brazilian Literature. Not even the Turkish writers I interviewed knew anything about it. He talked enthusiastically about the book "Gabriela, Cravo e Canela", by Jorge Amado. From that day on I started to love the book and, once more, to see and listen to things on it that weren't there before.

What a bless: Muammer lends me his eyes and teaches me how to watch the world, a brand new world, a Muammerian world, full of beauties and multicultural sounds. We start to listen and to almost believe we can understand all of them... With Muammer, I speak Persian, Greek, Azeri,...

Moreover, Muammer is charming, intelligent, contemporary, has a contagious sense of humor and so many stories to tell from the various trips he made around the world, including Brazil.

I wish all of us had a little from Muammer in our lives...

The person who gave me the honor of meeting him was his inseparable friend, Özgün Arman, and later I was the one who was begging not to miss any of his concerts.

One of the best stories was when he, having a concert in a place that was distant from my house and that I couldn't reach by myself, sent me two of his girl friends to take me there. They were both blind. They literally guided me all through the city, calling me "fistik", which is the slang for "chick" in Turkish. We had such a good time together on the way... Afterwards I was sure that I wasn't that able to see things as complex as they can be.

Sublime moments!!!

To my dear and eternal friend, whom I will always admire and thank for the precious gifts he gave to me, specially, his music! Hoping that it will be more and more understood and listened to by the most different people and transform them as it did to me.



O xampu - de Elizabeth Bishop

The Shampoo 
The still explosions on the rocks,
the lichens, grow
by spreading, gray, concentric shocks.
They have arranged
to meet the rings around the moon, although
within our memories they have not changed.

And since the heavens will attend
as long on us,
you’ve been, dear friend,
precipitate and pragmatical;
and look what happens. For Time is
nothing if not amenable.

The shooting stars in your black hair
in bright formation
are flocking where,
so straight, so soon?
—Come, let me wash it in this big tin basin,
battered and shiny like the moon.
Em minha própria tradução:
O Xampu
Explosões silenciosas on the rocks ,
os líquens, crescem
espalhando choques.
Concênticos, cinzentos, lentos, tecem
o encontro que terão com os anéis da lua,
embora, em minha história,‘inda sejam os mesmos, e na tua.
E já que os céus só irão nos acolher até então,
meu bem, você tem sido
tão precipitado e pragmático.
E veja só agora o que se passa. Que o tempo
é, mais que tudo, trapaça.

Estrelas cintilando em seus cabelos negros,
cadentes, borbulhantes,
se unirão em seus segredos.
Resolutas! Transparentes! Nuas!
_Vem, pra eu esfregá-los
nessa grande tina de metal brilhante
redonda e amassada como a lua.

 

Poemas de Nazim Hikmet

Poemas de Nazim Hikmet (o mais renomado poeta turco)


Hoje é domingo 

Hoje é  domingo.
Hoje me deixaram ir ao pátio, para o sol,
Pela primeira vez.
Pela primeira vez em minha vida
Eu me choquei ao ver
O céu,
Quão longe está,
E que azul,
Que vasto é.
E lá  fiquei a observá-lo,
Imóvel,  pasmo.
Depois sentei-me sobre a terra
Com respeito e devoção.
Sentindo contra as costas a parede branca.
Quem quer saber das ondas que anseio por rolar,
Quem quer
Saber das lutas e do amor,
Quem quer
Sentir a liberdade?
Agora,
É só o solo, o sol e eu...
Estranhamente alegre sob o céu. 
1973


A Nogueira


Eu, cabeça, espuma, espuma, nuvens.
Mar, que, em mim adentro, em mim afora...
Sou a nogueira
do parque “Casa das Rosas”.
De nó  a nó, de lasca a lasca,
Velha e precisada,
E que ninguém, nem a polícia olha. 
A nogueira do parque “Casa das Rosas”.
Minhas folhas ágeis agem como peixe em água,
Minhas folhas finas, puras como lenços da mais fina seda,
Puras pelo ar.
Colhe, minha rosa, a idade de teus olhos.
Minhas folhas que são mãos, e tenho cem mil delas,
Bela, pra tocar-te, e toco-te com elas.
Tu e Istambul.
Minhas folhas, que são olhos, e olho em desvario,
Vejo-te com cem mil olhos,
Tu e Istambul. 
Cem mil corações, que batem, batem, batem...
Minhas folhas... 
Sou a nogueira do parque “Casa das Rosas”,
Que ninguém, nem a polícia olha. 


Três Ciprestes


Em frente a minha porta havia três ciprestes
Três ciprestes
Três ciprestes balançando ao vento
Três ciprestes
Suas raízes fundas, suas cabeças celestes
Três ciprestes 
Uma noite o inimigo os vendo
Três ciprestes
E fui morto em minha cama
Três ciprestes
Arrancados pela gana
Três ciprestes
E assados aos pedaços
Três ciprestes
Sobre o mármore de um forno
Três ciprestes
Que iluminam com seu sangue o aço morno
Três ciprestes


Autobiografia


Nasci em 1902
E, nunca tendo voltado a minha terra natal-
Não gosto de olhar para trás –,
Aos três anos, em Alepo,  fui um neto de Pashá.
Em Moscou, aos dezenove, era estudante da Universidade Comunista de Moscou.
E aos quarenta e nove, eu voltava, convidado do partido.
E fui poeta desde os quatorze.
Há quem saiba tudo sobre plantas, peixes,
Eu, sobre separação.
Há quem saiba os nomes das estrelas todas,
Eu recito ausências.
Andei dormindo em prisões e em grandes hotéis.
Conheci a fome e até mesmo a greve de fome, e não há nada de que não provei. 
Aos trinta e seis, habitei quatro metros quadrados, ano e meio,
Aos cinqüenta e nove, voei de Praga a Havana por dezoito horas.
Sem ter visto Lênin, vi seu túmulo em vinte e quatro.
Em sessenta e um, eu o visito em seus livros.
Tentaram me afastar de meu partido, não deu certo.
Mas não me esmagaram os astros decadentes.
Em cinqüenta e um,  naveguei, junto a um jovem amigo, o dente da morte.
Em cinqüenta e dois, passei quatro meses paralisado por um coração partido esperando a morte. 
Tinha ciúmes das mulheres que amava,
Não invejo Charles Chaplin nem um pouco,
Decepcionei-as,
Mas não falei de meus amigos pelas costas. 
Bebi, nem todo dia,
E, que bom, ganhei o pão honestamente.
A alguns menti sem embaraço,
Menti pra não ferir,
Menti, também, só por mentir.
E andei em trens e aviões em que ninguém andava. 
...E  fui à ópera
A maior parte das pessoas nem ouviu falar de ópera,
E, desde os vinte e um, não tenho ido aos lugares aonde elas vão,
Mesquitas e igrejas, templos, sinagogas, feiticeiros.
Mas leram-me o café.
Meus escritos foram publicados em trinta ou quarenta línguas
E banidos da minha Turquia, de meu turco.
Ainda não tive câncer,
Nada indica que terei.
E nunca serei um primeiro ministro ou algo assim,
Nem o desejei.
Também não fui mandado à guerra,
Não cavei abrigos no fundo da noite,
E nunca tive que chegar à terra em aviões de mergulho,
Mas me apaixonei aos quase sessenta.
Em suma, amigos,
Mesmo que eu esteja hoje, em Berlim, me esvaindo de tristeza,
Posso dizer que vivi como um ser humano,
E quem sabe
Quanto tempo ainda...
E o que me acontecerá ainda...

O Salgueiro Chorão


A água corria.
Refletia em seu espelho
Os salgueiros que, em seu ventre,
Lavavam os cabelos!
Pra golpear esses salgueiros,
Em fogo, nus, também corriam
Os cavalos ruivos, como cavaleiros,
Ao lugar do sol  poente. 
De repente
Um cavaleiro
Como ave,
De quem tinham machucado a asa,
Cai de seu cavalo.
Ele não grita.
Ele não chama
Os que passam. 
Ele só  olha com uns olhos cheios
Para os cascos cintilantes de seus companheiros,
Que sumiam. 
Ai que lástima!
Que pena que é não cavalgar de novo os dorsos
Espumosos dessas feras galopantes,
Não brandir a sua espada aos inimigos brancos!
Gradualmente vai morrendo o bater dos cascos,
É que já devem estar perdidos no lugar do sol poente. 
Cavaleiros, cavaleiros, vermelhos cavaleiros,
Cavalos, vales, covas, cavam
Valas, cavam curvas...
Asas vales...
Cavalos...
Cavalo...
Cav... 
E a vida que passou como cavalos ruivos e alados.

Mais poemas - Ossip Mandelstam

Век 
Век мой, зверь  мой, кто сумеет
Заглянут в  твои зрачки
И своею кровью склеит
Двух столетий позвонки?
Кровь-строительница хлещет

Горлом из земных вещей,
Захребетник лишь трепещет
На пороге новых  дней. 
Тварь, покуда жизнь хватает,
Донести хребет должна,
И невидимым  играет
Позвоночником волна.
Словно нежный хрящ ребенка  -
Век младенческой земли,
Снова в жертву, как ягненка,
Темя жизни  принесли. 
Чтобы вырвать  век из плена,
Чтобы новый  мир начать,
Узловатых дней колена
Нужно флейтою  связать.
Это век волно  колышит
Человеческой  тоской,
И в траве  гадюка дышит
Мерой века золотой. 
И еще набухнут почки,
Брызнет зелени побег,
Но разбит твой позвоночник,
Мой прекрасный жалкий век.
И с бессмысленной  улыбкой
Вспять глядишь, жесток и слаб,
Словно зверь, когда-то гибкий,
На следы своих  же лап. 
Кровь-строительница  хлещет
Горлом из земных вещей,
И горячей рыбой  плещет
В берег теплый хрящ морей.
И с высокой  сетки птичьей,
От лазурных влажных глыб,
Льется, льется безразличье
На смертельный  твой ушиб. 
1923

 
O século 
Século meu, fera minha,
Quem te olhará  nas pupilas,
Cobrirá  com sangue os ossos
De dois vastos centenários?       
Sangue construtor que atiras
À garganta dos destroços
Terrenos, teu dorso treme
Ao umbral do novo dia. 
Até onde a vida dura,
Invisível ela brinca
Com a onda, a criatura,
Erguendo a própria espinha,
Cartilagem de um infante.
Século de um jovem mundo,
Sacrifício, como dantes,
Moleira da vida, fundo. 
Para libertá-lo-lo inteiro,                
Para, assim, recomeçar,
É preciso que uma flauta
Venha colar os joelhos     
Do dia. Século! Cavalga a onda -
Pois que a víbora respira -
Da aflição longa, incauta,
Em teu ouro, em tua lira. 
O broto inchará  ainda,
Verdes botões a espalhar,
Mas tens quebrada a espinha,
Século belo, era má.
E com sorriso insensato,
Outrora, flexível fera,
Olhas atrás, bruto e fraco,
A trilha que te revela. 
Sangue construtor que atiras
À garganta dos destroços
Terrenos, qual peixe giras,
Cartilagem do mar, quente,
Com teus pássaros na rede
Do azul úmido, celestial,
Nadas rijo, inabalável                             
Sobre a lágrima fatal. 
1923


 
***
Не говори никому,
Все, что ты, видел, забудь  -
Птицу, старуху, тюрьму,
Или еще что-нибудь. 
Или охватит  тебя,
Только уста разомкнешь,
При наступлении  дня
Мелкая хвойная  дрожь. 
Вспомниш на даче осу,
Детский чернильный пенал,
Или чернику  в лесу,
Что никогда  не сбирал. 
Октябрь 1930
 
*** 
Não diga nada a ninguém,
Tudo que já  viu, esqueça -
O pássaro, a velha, a presa
Ou algo mais, qu’inda vem. 
Quando seus lábios abriu
E apertou o próprio corpo,
Soube que o dia vindouro
Vem num tremor pinheiril. 
A lembrar o casarão,
O estojo, a pena, a vespa,
Os mirtilos da floresta,
Que não colheu `té então.       
 
Outubro de 1930
 
Сумерки свободы 
Прославим, братья, сумерки свободы,  -
Великий сумеречный год.
В кипящие ночные воды
Опущен грузный  лес тенет.
Восходиш ты в глухие годы,
О солнце, судия, народ. 
Прославим роковое  бремя,
Которое в слезах народный вождь берет.
Прославим власти сумрачного бремя,
Ее невыносимый  гнет.
В ком сердце есть, тот должен слышать, время,
Как твой карабль  ко дну идет. 
Мы в легионы  боевые
Связали ласточек  -  и вот
Не видно солнца; вся стихия
Щебечет, движется, живет;
Сквозь сети  -  сумерки густые  -
Не видно солнца и земя плывет. 
Ну что ж, попробуем: огромный, неуклюжий,
Скрипучий поворот  руля.
Земля плывет. Мужайтесь, мужи.
Как плугом, океан  деля,
Мы будем помнить  и в летейской стуже,
Что десяти небес  нмм стоила земля.
 
Москва, май 1918

 
O crepúsculo da Liberdade                               
Saudemos, irmãos, ao crepúsculo da liberdade!          
Glória ao grande ano crepuscular!
As águas noturnas borbulhantes, noite, é tarde,
A floresta cai imensa ao luar.
E tu, que passeaste pelos anos surdos,
Ó juiz, ó povo, ó astro solar! 
Saudemos ao fardo amargo e à aflição funesta,
Que o chefe guarda junto às lágrimas do povo.
Saudemos pelo jugo ingrato do poder que impera,
À opressão insuportável do infausto jogo.                      
E agregamo-nos ao passaredo,
Legiões de combatentes - veja!
O sol sumiu, tudo chilreia e se agita,
Cada coisa se revela em seu degredo.
Na teia - ó  crepúsculo espesso -
Esconde-se o sol, e a terra levita.                                     
E eis apenas o que temos: intentar,
Que a lei se torne mais aguda.                      
Sejam homens, homens - que a terra nada -,
Pra dividir o oceano, arar
As águas e não esquecer do frio intenso,                      
Pois que nos custará dez firmamentos.       
 
Moscou, maio de 1918
    
*** 
                            Анне Ахматовой 
Как Черный ангел  на снегу,
Ты показалась мне сегодня,
И утаить я не могу,
Есть на тебе печать Господня.
Такая странная печать -
Как бы дарованная свыше  -
Что, кажется, в  церковной нише
Тебе  назначено стоять.
Пускай нездешняя  любовь
С любовью здешней  будут слиты,
Пускай бушующая кровь
Не перейдет в твои ланиты
И пышный мрамор оттенит
Всю призрачность твоих лохмотий,
Всю наготу нежнейшей  плоти,
Но не краснеющих ланит. 
1913 <1914?>

 
*** 
                      Para Ana Akhmátova 
Um anjo negro na neve,
Que hoje me apareceu,
Veste - a sublime verve -,
O sinal divino, o céu.
Tua marca estranha, fátua,
uma dádiva, um capricho,
Faz parecer que no nicho
Tu te calas como estátua.
Mescle-se ao amor que arranque,        
Em ti, o amor que enlace                       
E mantenha estanque o sangue
Pra que não te atinja a face.
E que o mármore desate
A ilusão de teus andrajos,
E a nudez do corpo frágil
E a impassibilidade.                       
 
1913 <1914?>


 
Ахматова 

Вполоборота, о печаль,

На равнодушных  поглядела.
Спадая с плеч, окаменела
Ложно-классическая шаль. 
Зловещий голос  -  горький хмель -
Душа расковывает  недра:
Так  -  негодующая Федра -
Стояла  некогда Рашель. 
1914

 
Akhmátova 
Virando-se indelével, triste,
Lançara o olhar velado, chiste.
Até que o falso xale clássico caíra-lhe
Aos ombros - pedra - esculpiu-a.                    
A voz lúgubre e a leve embriaguez amarga
Desferram as profundezas de sua alma:
E assim - tal como Fedra revoltada -
Raquel por algum tempo se encontrava. 
1914


 
*** 
Какое лето! Молодых  рабочих
Татарские сверкающие спины
С девической повязкой на хребтах,
Таинственные  узкие лопатки
И детские ключицы. Здравствуй, здравствуй,
Могучий некрещенный  позвоночник,
С которым проживем не век, не два! 
Июль - август 1931

 
***
 
Um verão e tanto! Jovens operários,
Suas tártaras espinhas faiscantes
Quais cinturas de garotas, aros
Ombros misteriosos e delgados
E clavículas de infante. Olá, olá!
À rica vértebra não batizada, errante,
Com que não viveremos nem um século, nem dois, agora ou antes.    



 
*** 
Пусти меня, отдай  меня, Воронеж,  -
Уронишь ты меня иль проворонишь,
Ты выронишь меня или вернешь  -
Воронеж  -  блажь, Воронеж -  Ворон, нож! 
Апрель 1935

 
*** 
Permite-me, Vorónej, deixa-me, Vorónej,
Se me vogas ou me volves,
Tu me negas ou me voltas,
Vorónej - gênese, Vorônej - varão, gênio, nojo, jogo.     
Abril de 1935

 
*** 
Я молю, как жалости  и милости,
Франция, твоей  земли и жимолости. 
Правды горлинок твоих и кривды карликовых
Виноградарей  в их разгородках марлевых. 
В легком декабре  твой воздух стриженый
Индевеет  -  денежный, обиженный, 
Но фиалка и  в тюрьме  -  с ума сойти в безбрежности!
Свищет песенка  -  насмешница, небрежница  - 
Где бурлила, королей  смывая,
Улица июльская кривая. 
А теперь в Париже, в Шартре, в Арле
Государит добрый Чаплин Чарли  - 
В океанском  котелке с рассеянною точностью
На шарнирах он куражитя с цветочницей. 
Там, где с  розой на груди, в двухбашенной испарине
Паутины каменеет шаль,
Жаль, что карусель воздушно-благородная
Оборачивается, городом дыша,  - 
Наклони свою шею, безбожница,
С золотыми глазами  козы,
И кривыми картавыми ножницами
Купы  скаредных роз раздразни. 
3-7 марта 1937



 
*** 
França, peço, sê bondosa e compassiva,
E me concede a terra e tua madressilva. 
A verdade de teus pombos e as anãs
E tortas vinhas a tecer palavras, lã...                  
Corre teu ar rente no dezembro delicado,
Regelado, ressentido, monetário, magoado. 
A violeta toca a mente no aberto da prisão -
Jocosa e negligente, intrépida canção. 
Enquanto a Rua, artéria sinuosa,                
Borbulhante, varre o rei de sua casa. 
Mas agora em Paris, em Arles e Chartres               
Só quem reina é o bondoso Charles Chaplin. 
No cântaro oceânico, à imprecisão prevista,
Do gonzo, ele se gaba diante da florista.             



 
*** 
Ни о чем  не нужно говорить,
Ничему не следует  учить,
И печальна так и хороша
Темная звериная душа:

Ничему не хочет научить,

Не умеет вовсе  говорить
И плывет дельфином  молодым
По седым  пучинам мировым. 
1909



 
*** 
Nada é  preciso dizer,
Nada se deve aprender,
A triste e proveitosa alma
Sombrosa e animal aclama: 
Às fossas grisalhas do mar,
Nunca a poder descalar,
Não deseja ensinar nada,
Qual efebo, delfim, nada.            
1909 

Mais Mandelstam



 
 
О, как же я  хочу  -
Не чуемый никем  -
Лететь вослед лучу,
Где нет меня совсем. 
А ты в кругу  лучись -
Другого щастья нет -
И у звезды учись
Тому, что значит свет. 
Он только тем  и луч,   
Он только тем  и свет,
Что шёпотом  могуч   
И лепетом согрет. 
И я тебе хочу
Сказать, что  я шепчу,
Что шепотом  лучу
Тебя, дитя, вручу. 
23 марта 1937




 
*** 
Tudo o que quero é poder correr
No ar, sumir no céu, me dissipar,
Seguir, o raio, o rastro, a luz, e me perder,
De todos, tudo, me ausentar, e desaparecer, no ar.           
E quero te ver lá a fulgurar
No anel de estrelas-mestras,
A aprender, resplandecer, com elas,
E entender-lhes o sentido de brilhar. 
Pois que é  raio só a estrela,
Ilusão, murmúrio concebeu -
Brilho, resplendor, beleza,
Que o silêncio, então, ergueu.                     
Vem e escuta este sussurro,
Que o que tenho a te dizer, murmuro,
Vem e alcança-me o soslaio,                            
Que o trago a ti, criança, raio.
 
А небо будущим  беременно...
 
Опять войны  разноголосица
На древных  плоскогорьях мира,
И лопастью пропеллер  лоснится,
Как кость точеная  тапира.
Крыла и смерти уравнение,
С алгебраических пирушек
Слетев, он помнит измерение
Других эбеновых игрушек,
Врагиню-ночь, рассадник вражеский
Существ коротких ластоногих
И молодую силу тяжести:
Так начиналась власть немногих... 
Итак, готовьтесь жить во времени,
Где нет ни волка, ни тапира,
А небо будущим  беременно,
Пшеницей сытого эфира.
А то сегодня  победители
Кладбища лета обходили,
Ломали крылья стрекозиные
И молоточками  казнили. 
Давайте слушать  грома проповедь,
Как внуки Себастьяна Баха,
И на востоке  и на западе
Органные наставим крылья!
Давайте, бросим бури яблоко
На стол пирующим землянам
И на стеклянном блюде облако
Поставим яств посередине. 
Давайте всл  покроем заново
Камчатной скатертью  пространства,
Переговариваясь, радуясь,
Друг другу  подавая брашна.
На круговом, на мирном судьбище
Зарею кровь  оледенится.
В беременном глубоком будущем
Жужжит большая  медуница. 
А вам, в безвременьи  летающим
Под хлыст войны  за власть немногих, -
Хотя бы честь  млекопитающих,
Хотя бы совесть  ластоногих.
И тем печальнее, тем горше нам,
Что люди-птицы  хуже зверя
И что стервятникам и коршунам
Мы поневоле больше верим.
Как шапка холода альпийского,
Из года в  год, в жару и лето,
На лбу высоком  человечества
Войны холодные ладони.
А ты, глубокое и  сытое,
Забременевшее лазурью,
Как чешуя многоочитое,
И альфа и  омега бури;
Тебе - чужое е безбровое,
Из поколенья  в поколение, -
Всегда высокое и новое
Передается удивление.  
1923
 
O céu estava grávido do tempo

 
De novo irrompe a guerra, alvoroço,
No mundo de platôs antigos,
E a pá  da hélice e o osso
Da anta, majestoso brilho.
Da festa algébrica, a fórmula;
Da asa e da morte, a expressão;
Brinquedo de ébano recorda
O mote da maldita dimensão.
Viveiro do inimigo, noite
Dos seres curtos e penípedes,                    
Da jovem força - gravidade:
Do poder que a pouca gente assiste.                  
 
Prepara-te para o momento,
O lobo, a anta que não veio,
A gravidez do céu - do tempo
Futuro, trigo do ar cheio.             
Pois, hoje, nossos vencedores
Patrulham só  os cemitérios,
De insetos, exterminadores,
Lhe quebram as asas com martelos. 
Ouçamos o sermão do vento,
Como os netos de Sebastian Bach,            
De leste a oeste, tempestade,                                                                                               
                                                                
Revolta, a maçã do tempo.
À mesa dos terráqueos banqueteiros,
Nuvem, à  travessa vítrea,
Esconde-se entre outras iguarias.
 
Vamos cobrir tudo de novo
Com a toalha púrpura do espaço,                      
Conversa e se alegra o povo,
A brátina a um e outro.                     
No julgamento do Universo              
O sangue gela qual crepúsculo.           
Ao tempo duramente grávido
E a abelha zumbe ao futuro.                  
 
E pr`aqueles que navegam prematuros,
Castigados pela guerra do poder,
Pelo menos, honra dos mamíferos,
Ou que seja tino dos penípedes.             
Tão triste e amargo para nós
As pessoas-pássaros piores que animais,
E que nos milhanos e abutres,
Sem querer, acreditamos mais.
No gorro do inverno alpino,                   
De ano a ano, no calor e no verão,
Na fronte erguida da humanidade,
As palmas frias do conflito.
E tu, profundo e cheio,
Grávido do azul da Prússia,                     
Tem olhos como que escamas,                 
Alfa e ômega do enleio.
E tu, que és estranho e sem sobrolho,
Vai, passa, de estirpe a estirpe,
Nobre, alto e sempre novo,
A oferta, a surpresa, o acepipe.                          








 
Ленинград

Я вернулся в мой город, знакомый до слез,

До прожилок, до детских припухлых желез. 
Ты вернулся сюда  -  так глотай же скорей
Рыбий жир ленинградских  речных фонарей!

Узнавай же скорее декабрьский денек,

Где к зловещему  дегтю подмешан желток. 
Петербург! Я еще не хочу умирать:
У тебя телефонов  моих номера. 
Петербург! У  меня еще есть адреса,
По которым  найду мертвецов голоса. 
Я на лестнице черной живу, и в висок
Ударяет мне  вырваный с мясом звонок, 
И всю ночь напролет жду гостей дорогих,
Шевеля кандалами цепочек дверных.

 
Декабрь 1930


 
Leningrado
 
Voltei à  cidade conhecida até as lágrimas,
Até as veias infantis e as glândulas inchadas.             
Voltaste lá  - chora enquanto bebes, pois,
O óleo das lanternas fluviais.                                        
Então, conhece o dia de dezembro
Em que a gema se mistura ao breu do tempo. 
Petersburgo! Não quero morrer ainda,
Sei que tens meus números em tua agenda. 
Petersbugo! Também preservo as notas
Com os números de toda a gente morta. 
Moro na escada escura, e os destroços
Do som da porta batem-me aos ossos. 
Espero os hóspedes queridos noite adentro,
Arrastando-me as correntes do aposento.                      
.............1930


 
***
 
Я ненавижу свет
Однообразных  звезд.
Здравствуй, мой давний бред -
Башни стрельчатой  рост! 
Кружевом, камень, будь,
И паутиной стань:
Неба пустую грудь
Тонкой иглой  рань. 
Будет и мой  черед -
Чую размах крыла.
Так - но куда уйдет
Мысли живой  стрела?

Или, свой путь и срок

Я, исчерпав, вернусь:
Там - я любить не мог,
Здесь - я любить боюс...
 
1912


 
*** 
Odeio, sim, a luz que corre
Das estrelas, de seu parco brilho.
E o crescimento ogival da torre -           
Tão antigo quanto meu delírio. 
Que seja renda ou pedra, seja,
Da aranha, a mais fina teia,
Que seja a sagaz idéia,
Que atinja o céu vazio, flecha.           
Será  a minha vez também,
A asa que se abre, sinto.
Só não sei aonde vai, de onde vem,
A flecha de meu pensamento. 
Sou meu caminho ou degredo,                       
Quando estes acabarem, volto,
Lá, não poderia amar,
Aqui, de amar, eu tenho medo.

 
* 
Реймс и Кельн 
... Но в старом  Кельне тоже есть собор,
Неконченный и  все-таки прекрасный,
И хоть один священник  беспристрастный,
И в дивной целости  стрельчатый бор; 
Он потрясен чудовищным набатом,
И в грозный  час, когда густеет мгла,
Немецкие поют колокола:
“Что  сотворили вы над реймским братом!” 
1914


 
Reims e Colônia 
...Mas tem templos a Colônia antiga,
Grandiosa e desconhecida.
Lá, há  um sacerdote magistral,
Há um divino bosque ogival. 
E sua voz ressoa como dobres,
No momento em que a bruma se espessa.
Os sinos alemães cantam seu mote:
“O que se fez de nosso irmão de Reims!” 
1914

 
***
 
Из омута злого  и вязкого
Я вырос, тростинкой шурша,
И страстно, и  томно, и ласково
Запретною жизнью дыша. 
И никну, никем  не замеченный,
В холодный и  топкий приют,
Приветственным  шелестом встреченный
Коротких осенних  минут. 
Я счастлив жестокой обидою
И в жизни, похожей  на сон,
Я каждому тайно  завидую
И в  каждого тайно влюблен. 
1910 
***
 
Do pântano nocivo e lamacento,
Cresci como um caniço rumoroso,
Cresci languidamente carinhoso,
A vida proibida, em mim, sorvendo. 
Oculto e ignorado pela gente,
No albergue lamacento pantanoso,
Saudado pelo murmurar latente
Da curta temporada do outono. 
A ofensa pode me fazer contente,
Na vida, que, pra mim, parece um sonho,
Por todos que conheço, me apaixono,
E invejo cada um secretamente. 
1910