quarta-feira, 27 de julho de 2011

In Love with George Orwell's Works

Ando num momento de buscar "aquele" livro que eu deveria ter lido há MUITO tempo, mas nunca "dava tempo". O último foi o clássico "Dracula", de Bram Stocker, o que deu origem e vida a todo o mito, filmes, etc... Uma obra prima. E agora: 1984!!! Uma lição de tudo, impecável, perfeito, verídico e, como afirmava Degas, quando se referia à arte de verdade, mais real do que a realidade. Além disso, lembra tantas coisas que vivemos e pelas quais passamos sem nos articularmos em relação a elas... No livro, os trabalhadores devem passar, como rotina, todos os dias, pela "hora do ódio"... a violência é o entretenimento, as crianças são "horríveis" e a "teletela" acompanha todos os atos e pensamentos de um homem profundamente solitário.


Transcrevo duas primorosas passagens:


Eram quase onze horas e no Departamento de Registro, onde Winston trabalhava, já arrastavam cadeiras dos cubículos e as arrumavam no centro do salão, diante da grande teletela, preparando-se para os Dois Minutos de ódio. Winston ia ocupando seu lugar numa das filas do meio quando entraram inesperadamente na sala duas pessoas que conhecia de vista, mas com quem nunca falara. Uma delas era uma moça com quem se encontrara muitas vezes nos corredores. Não sabia como se chamava, mas sabia que trabalhava no Departamento de Ficção. Era de presumir - pois a vira levando uma chave inglêsa nas mãos sujas de graxa - que fosse mecânica de uma das máquinas de novelizar. Devia ter uns vinte e sete anos, e era de aparência audaciosa, com cabelo negro e espesso, rosto sardento e movimentos rápidos, atléticos. Uma estreita faixa escarlate, emblema da Liga Juvenil Anti-Sexo, dava várias voltas à sua cintura, o suficiente para realçar as curvas das ancas. Winston antipatizara com ela desde o primeiro momento. E sabia porquê. Era por causa da atmosfera de campos de hóquei, chuveiro frio, piqueniques e grande linha moral que conseguia inspirar. Êle antipatizava com tÔdas as mulheres, principalmente com as moças e bonitas. Eram sempre as mulheres, e principalmente as moças, os militantes mais fervorosos do Partido, os devoradores de palavras de ordem, os espiões amadores e os espiculas dos desvios. Esta jovem lhe dava a impressão de ser mais perigosa que a maioria. Uma vez que se haviam cruzado no corredor, ela lhe lançara um rápido olhar de esguelha que parecia tê-lo penetrado até o imo, e o enchera de terror. Até lhe ocorrera a idéia de que talvez fosse da Polícia do Pensamento. Na verdade, isso era pouco provável. Entretanto, continuava sentindo um estranho mal-estar, em cuja composição havia medo e hostilidade, e que sobrevinha sempre que ela sempre se aproximava. (...)
(...) O horrível dos Dois Minutos de ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vindita, um desêjo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo, contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas. E no entanto, a fúria que se sentia era uma emoção abstrata, não dirigida, que podia passar de um alvo a outro como a chama dum maçarico. Assim, havia momentos em que o ódio de Winston não se dirigia contra Goldstein mas, ao invés, contra o Grande Irmão, o Partido e a Polícia do Pensamento; e nesses momentos o seu coração se aproximava do solitário e ridicularizado herege da tela, o único guardião da verdade e da sanidade num mundo de mentiras. No entanto, no instante seguinte se irmanava com os circunstantes, e tudo quanto se dizia de Goldstein lhe parecia verdadeiro. Nesses momentos, o seu ódio secreto pelo Grande Irmão se transformava em adoração, e o Grande Irmão parecia crescer, protetor destemido e invencível, firme como uma rocha contra as hordes da Ásia, e Goldstein, apesar do seu isolamento, sua fraqueza e da dúvida que cercava a sua própria existência, lhe parecia um hipnotizador sinistro, capaz de destruir a estrutura da civilização pelo mero poder da voz.(...)

(...) O ódio chegou ao clímax. A voz de Goldstein transformara-se de fato num balido de ovelha, e por um instante o rosto se transformou numa cara de carneiro. Depois a cara de carneiro se fundiu na de um soldado eurasiano que parecia avançar, enorme e terrível, com a metralhadora de mão rugindo, parecendo saltar da superfície da tela, de modo tão real que alguns da primeira fileira se inclinaram para trás. No mesmo momento, porém, arrancando um fundo suspiro de alívio de todos, a figura hostil fundiu-se na fisionomia do Grande Irmão, de cabelos e bigodes negros, cheio de força e de misteriosa calma, e tão vasta que tomava quase toda a tela. Ninguém ouviu o que o Grande Irmão disse. Eram apenas palavras de incitamento, o tipo das palavras que se pronunciam no vivo do combate, palavras que não se distinguem individualmente mas que restauram a confiança pelo fato de serem ditas. Então o rosto do Grande Irmão sumiu de novo e no seu lugar apareceram as três divisas do Partido, em maiúsculas, em negrito:
GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA
Mas o rosto do Grande Irmão pareceu persistir por vários segundos na tela, como se o seu impacto nas pupilas fosse forte demais para se esmaecer tão rápido. A mulherzinha do cabelo côr de areia atirara-se sôbre o espaldar da cadeira que tinha à frente. Com um murmurio trêmulo que parecia dizer "Meu Salvador", extendeu os braços para a tela. Depois ocultou a face nas mãos. Era claro que orava.
Nesse momento, todo o grupo se pÔs a entoar um cantochão ritmado "G.I.!...G.I.! ... G.I.!" repetido inúmeras vezes, com uma longa pausa entre o G e o I - um som cavo e surdo, curiosamente selvagem, no fundo do qual se parecia ouvir batidas de pés nús e o rufo dos atabaques. Durou meio minuto talvez. Era um estribilho que se ouvia com frequência nos momentos de emoção dominadora. Era em parte um hino à sapiência e majestade do Grande Irmão porém, mais que isso, era auto-hipnotismo, o afogar deliberado da consciência por meio do barulho rítmico. As entranhas de Winston pareceram esfriar. Durante os Dois Minutos de ódio, não era possível deixar de participar do delírio geral, mas aquele cântico sub-humano "G.I.! ... G.I.!" sempre o enchia de pavor. Naturalmente, cantava com os outros: seria impossível proceder doutra forma. Dominar os sentimentos, controlar as feições, fazer o que todo mundo fazia, era uma reação instintiva. Havia porém um lapso de dois segundos em que a expressão de seus olhos poderia trai-lo. E foi exatamente nesse lapso que a coisa sucedera - se é que de fato sucedera.(...)

(...) A  teletela assinalou catorze horas. Precisava sair dali a dez minutos. Tinha de estar de volta ao serviço às catorze e trinta. Curiosamente, o soar das horas pareceu dar-lhe novo ânimo. Êle não passava dum fantasma solitário exprimindo uma verdade que ninguém jamais ouviria. Mas enquanto a exprimisse, a continuidade não seria interrompida. Não é fazendo ouvir a  nossa voz mas permanecendo são de mente que preservamos a herança humana. Êle voltou à mesa, molhou a pena e escreveu: Ao  futuro ou ao passado, a uma época  em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros e que não vivam  sós - a  uma época  em  que  a  verdade existir e o que foi feito não puder ser desfeito (...)

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